"O Insulto" é a expressão geopolítica do ódio no mundo contemporâneo




O longa-metragem libanês “O Insulto” (2017), do diretor Ziad Doueiri, chegou até mim como um dos concorrentes à premiação de melhor filme estrangeiro do Oscar, cujo argumento detinha bastante apelo político, principalmente se levarmos em conta o contexto recente de conflitos bélicos na Síria. Nesse contexto, seu êxito enquanto produto cultural dependia de uma prova difícil, uma vez que seus adversários traziam temas de peso, a exemplo do vencedor, “Uma Mulher Fantástica” (2017), que abordou a questão LGBT. Mas, no meu entender, sua mensagem se sobrepõe, transborda.

Antes de assisti-lo, já tinha alguma simpatia pelo assunto, pela ideia simples do seu argumento. Mas hoje, vendo de fato o teor da sua dramaturgia, considero o título libanês como um dos filmes mais importantes dos últimos anos. Com o didatismo próprio daqueles que têm poucas oportunidades para contar a sua história ao Mundo, O Insulto nos convida a refletir sobre as divisões que o Mundo hodierno carrega dentro de si, as feridas não cicatrizadas, a intolerância.

Em uma Beirute dos últimos dias, a estória se desenlaça a partir de um desentendimento sobre um cano irregular numa propriedade do bairro de Fassouh. Um insulto explosivo leva Tony Hanna, um cristão libanês, e Yasser Salameh, um refugiado palestino, para o tribunal. De feridas secretas a revelações traumáticas, o circo midiático envolve e divide o Líbano em uma crise social, forçando Toni e Yasser a reconsiderarem suas vidas e preconceitos.

Um primeiro insulto simplório, disparado pelo palestino (“babaca do caralho”), instala o clima de rivalidade entre Hanna e Salameh. A narrativa ficcional explode, entretanto, quando o cristão revida: “Quisera eu que Sharon tivesse exterminado vocês”. É uma referência ao governo do primeiro-ministro israelense entre 2001 e 2006, Ariel Sharon, que rememora um momento crítico do conflito sionista entre Israel e Palestina, do qual Salameh é refugiado. 

Fica claro, nesse episódio, que há uma imensa dificuldade de conviver com a natureza do outro, tanto que cogita-se a eliminação física do outro, que é estrangeiro, nesse caso, talvez estranho, desconhecido. Essa aversão à natureza do outro é algo presente na história da Humanidade, que se ampara na reflexão "homo homini lupus", de Thomas Hobbes. Só que, no munto contemporâneo, parece não haver mais espaço para as guerras bárbaras como as conhecíamos nos livros de História. O mundo pós-moderno guerreia pelo terrorismo. Assim, as camadas de sofrimento de cada povo se sobrepõem, concorrem entre si em busca de compaixão.

Embora construído nos tons regionais do mundo árabe, O Insulto é um filme universal. Fala sobre as nuances do Oriente Médio em guerra, fala sobre o discurso de ódio nas redes sociais do Ocidente. É sobre a dificuldade em reconhecer dignidade no outro. Por isso é tão necessário e cheio de mensagens urgentes. É um filme mais próximo daquilo que chamam de isenção, porque não entrega seu lado. Quando leva para a tela as palavras de dois advogados, cientes de suas fraquezas, mas empenhados em levar até o fim a honra de seus clientes, que nada mais são do que seres humanos à procura da verdade, O Insulto nos confronta com o sentimento puro de Justiça.

O desfecho, uma reconciliação, pouco se parece com a realidade que enfrentamos diariamente. Aquilo que nos vem através das redes sociais e da mídia, que é o discurso de ódio, ecoa com rapidez e indiferença. A nossa arquitetura social parece não fornecer indícios de que um "xingamento" daquela ordem encontraria pontes que permitam acordo, a retomada da civilidade.

Contudo, deixo vocês com essas frases que esclarecem um pouco do filme e muito do que precisamos compreender hoje sobre respeito, justiça e dignidade.



“Quando passamos dos limites, e aquelas palavras passaram de todos os limites, devemos esperar por uma reação. É normal. É inevitável. É humano.”
(Nadine Wehbe, advogada do refugiado palestino Yasser Salameh)


“Na verdade, aquelas palavras são resultado de uma ferida que não cicatrizou. O que acontece nesse tribunal é o início do que nos permitirá aceitar um ao outro. Algo deve ser dito, algo verdadeiro, fundamental. Ninguém tem exclusividade sobre o sofrimento. Ninguém.” 
(Wajdi Wehbe, advogado do cristão libanês Tony Hanna)

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