Anomalisa: um estudo social sobre o amor fugaz


Como seria uma história em animação contando a vida dos adultos? Por que ninguém havia pensado isso antes? Foi a minha inquietação quando eu descobri Anomalisa (2016, drama/romance), o filme mais recente do meu querido e excêntrico roteirista Charlie Kaufman. Demorei algum tempo para assisti-lo, me perdi no meio do caminho contemplando Sinédoque, Nova Iorque (2008, primeira direção de Kaufman), um drama subestimado pelo público e crítica sobre um dramaturgo que intenta realizar um espetáculo megalomaníaco sobre sua própria vida. Acho interessante que, muitas vezes, o impulso criativo de Kaufman é o mais honesto possível com o seu público: nós só podemos falar sobre o que vivemos e compreendemos. Provavelmente, é mais fácil falar sobre si mesmo. É terapêutico, na verdade.

Anomalisa, como o próprio título sugere, é uma estória incomum. Não é apenas uma animação adulta, é um stop motion. O desafio é duplo, você transpor um roteiro para um universo sem vida e ainda conseguir emocionar.  A ideia é supostamente simples, mas a prática é, no mínimo, trabalhosa: você criar modelos que são movimentados e fotografados quadro a quadro. Calcule o tempo e o trabalho que são gastos! O cinema infantil consagrou alguns filmes nessa técnica, como é o caso de A Fuga das Galinhas (2000), Wallace e Gromit (2005) e O Estranho Mundo de Jack (1993, com roteiro de Tim Burton). No Festival Internacional Brasil Stop Motion, que acontece no Recife, é possível conhecer muitas obras adultas interessantes nesse sentido, de várias partes do Brasil e do mundo. É verdadeiramente um mundo de possibilidades e eu repito: por que os  grandes realizadores não investem mais em animação adulta?

Charlie Kaufman é autor do complexo drama Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), sobre um casal que tenta se apagar mutuamente um da memória do outro, após desavenças – o famoso filme dramático de Jim Carrey. Ele também escreveu o metalinguístico Adaptação. (2002, realizado por Spike Jonze), onde Nicolas Cage interpreta o próprio Charlie Kaufman em uma crise de criatividade. Anomalisa seria uma obra kaufmaniana mais pela alternativa da linguagem de animação, pelo desafio de transportar o drama para esse novo universo, o que não lembra tanto as outras obras do autor, mas vamos à sinopse.


Michael Stone (voz de David Thewis) é um palestrante motivacional que acaba de chegar à cidade de Cincinnati. Ele segue do aeroporto direto para o hotel, onde entra em contato com uma antiga amante para que possam se reencontrar. A iniciativa não dá certo, mas Michael logo se insinua para duas jovens que foram ao local justamente para ver a palestra que ele dará no dia seguinte. É quando ele conhece Lisa (voz de Jennifer Jason Leigh), por quem se apaixona.

As soluções que Kaufman utiliza para ilustrar seu drama são curiosas. Os bonecos da animação são muito bem feitos e a configuração do rosto permite expressões fidedignas. É algo estranho, mas você logo percebe que existem apenas três vozes para todos os personagens. A voz do protagonista, Michael, e da sua amada, Lisa, são únicas. Todos os outros personagens são interpretados pela voz de Tom Noonan. Kaufman e Duke Johnson, os diretores, buscam uma conotação de monotonia, das pessoas terem a mesma expressão. Até descobrir a voz de Lisa, a única diferente, Michel sente-se solitário. E sim, Anomalisa é a junção da palavra "anomalia" com o nome próprio Lisa. É sobre um deslumbramento tolo; o filme explica lindamente. O tanto de anormal que experimentamos de vez em quando. Aquela surpresa que se apresenta no meio do cotidiano opaco. Como a descoberta descrita no conto "O Aleph" do argentino Jorge Luis Borges.

Kaufman retorna aos dramas do coração em Anomalisa, porque estuda esse vazio de sentimentos que a sociedade moderna experimenta. A necessidade de se desapegar do outro, pensada em Brilho Eterno, agora dá lugar à falta de carisma, à ausência de pessoalidade, de personalidade, à falta de alma mesmo que as pessoas carregam. Anomalisa é um estudo das pessoas coisificadas, padronizadas pela voz. O cigarro, a bebida, o sexo pelo sexo e o business se tornaram o caminho que todos percorremos. O filme fala sobre uma apatia que tomou conta das pessoas. E quando coloca Michael e Lisa frente à frente, ele meio que aponta um oásis. “Ainda é possível encontrar alguém diferente, apesar de tudo”. Mas o que estamos procurando está realmente nos outros ou em nós mesmos?

Quando Michael vê a voz de Lisa se tornar igual às outras, ele sente que a vida se tornou uma tragédia diária, que nos acostumamos a perdas irreparáveis, mas também imperceptíveis. Em silêncio, ele percebe que o motivo de sua maior euforia dos últimos anos se desfez sem explicação. Então Michel segue a vida, descarta Lisa e retorna para a vida apática com sua família, suas palestras sobre atendimento ao cliente. A confortável vida de aparências, narcísica e vazia. Kaufman bebe na fonte de Milan Kundera, em A Insustentável Leveza do Ser. A grandiosidade que experimentamos, as coisas que dão sentido à nossa vida podem durar apenas alguns segundos. É o intenso agora. Mas por que estamos nos tornando assim? É o que o cinema de Kaufman investiga.

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