Snowden e 1984: quando a ficção científica se torna realidade


Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.” Esse é o slogan do Partido que governava o país imaginário Oceania, na aventura distópica 1984, de George Orwell, lançado em 1949. Mais de meio século depois, o mundo inteiro vê a estória do romance inglês virar realidade, graças ao fenômeno Edward Snowden. O jovem hacker trouxe à tona o antigo dilema “liberdade x segurança”, quando publicizou o sistema de vigilância dos Estados Unidos da América (EUA), que põe olhos sobre qualquer cidadão ou instituição do planeta. O cinema permite compreender as semelhanças das duas histórias, dos seus respectivos protagonistas e destinos. Citizenfour (2014), documentário de Laura Poitras, e Snowden (2016), suspense biográfico dirigido por Oliver Stone, são registros cinematográficos que funcionam como janela para a reflexão que se segue. Quando a ficção científica se tornou realidade?

Para que vocês entendam, é interessante ver a sinopse do livro: Winston, herói de 1984, último romance de George Orwell, vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada qual vive sozinho. Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão (Big Brother), a mais famosa personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito, além de vazio de sentido histórico. De fato, a ideologia do Partido dominante em Oceania não visa nada de coisa alguma para ninguém, no presente ou no futuro. O’Brien, hierarca do Partido, é quem explica a Winston que “só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida-longa, nem felicidade – só o poder pelo poder, poder puro.” Essa obra literária foi concebida dentro de um país democrático (Inglaterra), observando os regimes totalitários que a Europa viveu durante e no pós-Segunda Guerra.

Antes de mais nada, os EUA de Snowden e a Oceania de Winston compartilham um ideal. “Vivemos o melhor dos países e precisamos honrá-lo, defendê-lo, venerá-lo. O mundo inteiro nos deve clemência e respeito”, para resumir em poucas palavras o sentimento. É de um nacionalismo exemplar. O país real ostenta a maior economia do mundo e um histórico soberbo de demonstração de poder – vide as bombas atômicas e as invasões em países do Oriente Médio. O que só confirma esse ideal é a presença constante nos filmes americanos da afirmação “nós vivemos no melhor dos países”. O nacionalismo unifica a nação e garante que o projeto de poder triunfe, apesar de tudo. Tudo que se foi dito sobre os EUA neste parágrafo pode-se dizer da Oceania ficcional.

Jornalista Glenn Greenwald entrevista Edward Snowden

Todavia, que fatos foram capazes de dar novo verniz ao clássico 1984, depois de tanto tempo? Mesmo não se identificando com um regime totalitário, os EUA passaram a ditar regras e adotar posturas arbitrárias após sofrerem o atentado de 11/09/2001, de autoria da Al-Qaeda, um tremendo ataque e afronta ao ideal americano. “Guerra é paz.” Para assegurar que o sonho americano aconteça, é preciso garantir a segurança da nação. E como lidar com uma ameaça que não se declara, o terrorismo? Como lutar nessa guerra de anônimos? Não existe mais um alvo claro onde se possa despejar bombas. Não é um governo específico do Oriente Médio que declarou guerra aos norte-americanos. São forças dissidentes e imersas na grande rede que desafiam a maior economia do mundo. A autoridade dos Estados Unidos, de fato, não tem limites. O bem-estar americano, de fato, não tem paralelo, está acima de tudo.

O filósofo Zygmunt Bauman menciona Freud, ao dizer que “toda civilização é uma troca”. Para vivermos seguros, nós pagamos com nossa liberdade. Não posso garantir a sua segurança, se não sou capaz de controlar todos os elementos presentes na sociedade. Um governo eficiente não deve lidar com surpresas, deve ser capaz de antever a ameaça, o crime, a violência. No filme Minority Report (2002), de Steven Spielberg, o governo investe num programa que combate o “pré-crime”, indivíduos especiais, capazes de prever o futuro, apontam o criminoso antes da consumação. Em 1984, as tele-telas estão presentes em quaisquer espaços, públicos ou privados, para prevenir o que o Partido denomina como “crime-pensamento”. Se eu estou à frente do criminoso, eu sou capaz de detê-lo. A vigilância é uma das maiores armas, senão a maior, contra a violência.

O jovem Edward Snowden é arrastado para dentro da Agência Nacional de Segurança (NSA) por essa percepção inocente sobre vigilância e segurança pública. O personagem que tinha a missão de proteger os cidadãos aos poucos vai se dando conta do alto preço que se paga para manter a salvo o mito do melhor país do mundo. “Ignorância é força.” A malha global de tecnologia informática é o terreno de onde os EUA arrancam a mais íntima informação de qualquer indivíduo. Computadores e smartfones estão nas mãos de qualquer pessoa, hoje em dia. E o sistema é capaz de saber tudo que a internet pode captar. Não existe filtro que separe a intimidade protegida pela lei, porque a lei está intrinsecamente a serviço dos interesses do poder. Nesse sentido, não há diferenciação entre ditaduras e democracias. O governo decide o que é melhor para si e para o povo. Se uma maioria os colocou lá, se popularidade desse país é hegemônica, os governantes têm legitimidade para decidir o que é melhor para o mundo.

Na ficção, Edward Snowden é vivido pelo ator Joseph Gordon-Levitt

Em linguagem mais simples, o filme Snowden traduz o que Citizenfour revela em primeira mão. Sim, porque Citizenfour é o relato colhido na fonte, quando Snowden conta seu segredo a Laura Poitras, Glenn Greenwald e Ewen MacAskill, antes de se exilar em Moscou. À medida que Laura grava seu documentário (premiado com o Oscar da categoria em 2015), Glenn e Ewen apuram para publicar nas páginas online e impressas do gigante inglês The Guardian. Subitamente o mundo inteiro se descobre vigiado pela NSA, com o pretexto de que os EUA estavam protegendo seus cidadãos do terrorismo. Em Minority Report, o governo justifica que essa vigilância dos “pré-crimes” fizeram cair a zero a taxa de homicídios onde o programa foi implantado. O dilema é que tal vigilância, louca e desenfreada, é a esteira para que outras ações escusas ocorram. O primeiro passo é proteger os cidadãos, mas em seguida, os EUA se beneficiam de saber o que pensam os governantes das potências concorrentes, os presidentes das multinacionais que disputam mercado com as empresas americanas e assim por diante. Uma vigilância sem limites é um cheque em branco e o preço é a nossa liberdade.

O governo americano – tanto em Snowden quanto em Citizenfour – quer nos fazer acreditar que “Liberdade é escravidão”. Mas é preciso entender que, em qualquer lugar do mundo, nós participamos ativa ou passivamente de uma construção social da realidade. E quem dispõe de poder simbólico é que vai dizer como a realidade se parece, vai desenhar sua mitologia e nos impor como “verdade” o que pode se chamar de “versão da história”. Nos EUA, isso é ainda pior porque, independente da força que assuma o poder, seja democrata ou republicano, esquerda ou direita, existe um filosofia americana, capitalista por natureza, que obriga o governante a seguir o rito da Casa Branca. Obama não fez muito diferente do que Bush faria se estivesse no poder, como fica claro nos filmes sobre a revelação de Snowden. Ainda candidato, Obama defende que um presidente não pode passar por cima da lei, por mais nobres que sejam suas intenções, mas as denúncias irrompem durante seu mandato. Vigiar pessoas sem qualquer escrúpulo se tornou expediente de um governo que se acostumou a não abaixar a cabeça para ninguém. E o castigo a quem desafia essa supremacia é fato recorrente no noticiário. Ir à guerra, algo que para os brasileiros é totalmente incomum, nos parece uma realidade absolutamente comum para os cidadãos americanos.

Mas a gente se pergunta: que guerra, meu Deus? Em pleno século XXI ainda existe guerra? Sim, meus amigos. “Guerra é paz.” Nós vemos o tempo todo as grandes potências intervindo em territórios de interesse político e econômico, demonstrações de força totalmente desumanas, porque o que interessa é apenas o petróleo, é manter o American Way of Life a pleno vapor. Quem assistiu à versão americana de House of Cards, vai entender esse jogo de poder cuja arena é o território do mundo. Para levar seu projeto à frente, o ganancioso Frank Underwood ora joga com a população americana, ora com o presidente russo e os grupos terroristas do Oriente Médio. O complicado enredo sociológico faz com que o “cidadão comum” perca de vista os passos que os seus políticos vêm dando no xadrez da aldeia global.

O produto desse sistema complexo, o que resplandece na superfície, de forma palpável, é o nacionalismo exacerbado, “o que é meu em primeiro lugar”. Bauman vai dizer que, na verdade, está sendo implantado nas pessoas um sentimento de mixofobia, uma repulsa a se misturar com o estranho e o estrangeiro – muçulmanos, latinos, negros em larga escala. Mais uma vez, a moeda de troca é “liberdade x segurança”. Se o país alcançou esse absurdo desenvolvimento – um PIB de US$ 16 trilhões –, é preciso protegê-lo de forças estranhas que querem destruí-lo ou cobiçá-lo. Na maioria das vezes, é muito mais ameaça do que perigo real.

O livro 1984 foi adaptado para o cinema exatamente em 1984 pelo diretor Michael Radford

Snowden, 1984 (adaptado para o cinema em 1984 pelo diretor Michael Radford), Minority Report, Citizenfour, A Vida dos Outros (2007), Fahrenheit 451 (1966) e outras narrativas cinematográficas (ou literárias) vão apontar que a saída é pela via do indivíduo. Em alguns casos, a subversão é bem-sucedida, como aconteceu a Snowden e sua realidade didática. Por outro lado, a ficção de 1984, texto-mãe de todo esse pensamento acerca de um totalitarismo sufocante não alcança um desfecho feliz. O protagonista Winston Smith é acuado pelo sistema, que previne a subversão da ordem. Diante do seu torturador, Smith afirma que “é impossível criar uma civilização baseada no medo, no ódio e na crueldade. Uma civilização assim não pode perdurar”. Mas, nessa circunstância capital, o indivíduo é oprimido pelo peso de um governo que está presente, por meio do Big Brother, em todas as instâncias onde há vida, até mesmo dentro da cabeça das pessoas. Smith é esmagado pela soberania daquele poder que se anuncia onipresente, onipotente, onisciente e imortal.

Para mim, foi engraçado perceber que Snowden repete comportamentos típicos de regimes onde não há liberdade individual. Se esconder das webcams, evitar fotografias, utilizar sistemas de comunicação criptografados ou escrever em papéis que seriam destruídos logo após. A comunicação ao pé do ouvido, a desconfiança guardada nos confins da própria mente, disfarçando de todas as maneiras a descrença no maior país do mundo. O hacker Elliot Alderson, protagonista da série Mr. Robot (2015), muito se assemelha a esse perfil de indivíduo antissistema. Um funcionário mediano inserido na grande organização, conhecedor da infraestrutura, e que se revolta com o status quo. Ocorre uma mesma perseguição, o medo da punição pelas atitudes heréticas, o sentimento de vigilância onipresente, de não poder confiar em absolutamente ninguém.

Contudo, diferente da aniquilação sofrida por um herético Smith, Edward Snowden é capaz de driblar o poder dos EUA, porque na nossa realidade o resto do mundo ainda existe. As fronteiras do maior país do mundo não puderam conter os segredos que Snowden espalhou para todo o Globo. O grande feito de Snowden, e que nos faz lembrar 1984, é abrir os olhos. Para que deus não se volte contra nós, para que o nosso livre-arbítrio não seja alienado. A confirmação da vida é a morte. Logo, se você retira a contingência da vida e da realidade, você aniquila o equilíbrio que justifica estarmos aqui. Torna-se só uma equação, um jogo de pesos, o vazio total. E nós sabemos, a vida é muito mais do que isso.

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