Por que a professora de piano frequenta cinema pornô e bate na própria mãe



A realidade, dada a sua natureza revolta, é feita de certa repetição. Talvez se usássemos trilha sonora na vida real, as melodias do piano, repetitivas ou anárquicas, dariam cor à nossa vida. A rotina é a disciplina que doma a vida. É assim que se parece a minha primeira leitura do filme A Professora de Piano (2002), dirigido pelo virtuoso diretor austríaco Michael Haneke. Isabelle Huppert é a pianiste Erika Kohut, que dá aulas num conservatório de alto nível em Viena para jovens musicistas. Erika frequenta cinemas pornográficos e sex shops para escapar da influência de sua mãe dominadora. Tudo muda quando um de seus alunos se propõe a seduzi-la.

É desafiador tratar aqui no blog sobre um filme de Haneke. Chamá-lo de virtuoso seria um ponto fora da curva, eu diria, já que ele é costumeiramente denominado louco, perverso, um diretor que gosta de chocar. Mas eu diria que Haneke é o diretor que tem excelência em furar as aparências, em penetrar o âmago do ser humano, em desconstruir aquela moral linear forjada a tanto custo pela diligência do dia-a-dia em sociedade. Bebem da mesma fonte de Haneke as estórias de Black Mirror, os filmes de Lars von Trier; provavelmente o mesmo veneno que embriagou Bergman e que fez a mão de Kubrick pesar em alguns de seus longas-metragens.

Falo sobre diretores habituados a visitarem, por detrás das aparências, o lado obscuro e perverso do ser humano, sem fazer qualquer cerimônia. Não acredito que eles queiram chocar, apenas. Estão fazendo arte, estão utilizando as lentes da câmera para arrancar da cena o sublime. Isto acontece frequentemente nos filmes de Haneke como Cachè (2005) e Amour (2012). E acontece tranquilamente em A Professora de Piano.

Uma das primeiras cenas a que somos expostos é de uma mãe idosa controlando a hora que a filha adulta chega em casa, por que demorou tanto a chegar. Indignada com essa situação disparatada, a tal adulta, Erika, nossa pianista de meia idade, entra em desespero e agride a própria mãe. Logo em seguida, ambas pedem desculpas uma a outra, enquanto a filha repara o tufo de cabelo que arrancou da cabeça da mãe, no calor da discórdia. Isso é Haneke. E é sintomático que comece assim. Brutal e sutil, ao mesmo tempo. A vida cotidiana e seus pequenos recados extravagantes.



Para fugir a esse tipo de controle maternal, Erika passa uma imagem de pessoa disciplinada. Ela é alguém metódica, de um penteado exemplar, roupa limpa e bem passada, uma mulher que vive a alta sociedade, a limpeza estéril da sala de audição do conservatório, com seus quadros de rostos medievos, os compositores que reinventaram a beleza e a arte humanas com suas sinfonias belíssimas, que me fazem pensar a relação estreita entre filosofia e música, na amizade e rivalidade entre Nietzsche e Wagner. Essa mesma amizade tem no centro da sua composição a loucura, é muito tênue a linha entre a inventividade, a maestria completa e a perda da sanidade mental. Eu diria que os gênios abandonaram seus corpos vulgares para que suas almas alcançassem voos inapreensíveis. Por isso A Professora de Piano fala sobre loucuras, elucubrações, divagações, dotes artísticos que nós, meros mortais, não compreendemos bem. Entendemos que Schubert alimenta a alma de Erika de uma forma sobre-humana.

Aquele cotidiano entre aulas rigorosas com os jovens músicos, audições para apresentações públicas, exames de admissão, uma plateia de aristocratas de expressão afetada pela fruição de uma arte distinta, uma rotina excruciante que não condiz com as transgressões de uma mulher de meia idade, ora dama da alta sociedade, agora cheirando um papel higiênico empapado de esperma de um desconhecido, num cinema pornô de um shopping qualquer. Assim que entra na loja de pornografia, Erika é olhada com surpresa pelos homens que frequentam o local. Ela surpreende os próprios alunos de música folheando revistas eróticas nesta mesma loja. E, num primeiro momento, Erika ataca a lógica hipócrita de uma sociedade machista. Erika não discursa um feminismo, não usa uma retórica de autonomia individual, mas atua conforme seus preceitos, ocupa um lugar que é seu por direito.


Haneke trai o espectador, desde o início, quando nos entrega um paradoxo. A personagem que controla, que é disciplinada, que compreende profundamente a existência humana com o seu intelecto iluminado, é a mesma personagem que sofre, que se vê controlada pela personalidade dominadora da mãe. Pior ainda: é aquela que não sucumbe ao amor, porque sendo seduzida, prefere entregar-se por completo, uma masoquista, escrava por opção. Primeiro Erika rejeita a paixão de seu aluno Walter Klemmer, o jovem “cheio de qualidades”. Erika faz questão de demonstrar a completa repulsa pelo seu amor, pela sua pessoa, pela sua dedicação, pela submissão a que ele se entrega a ela. Mas, tão logo esse amor se intensifica e vence o bloqueio, Erika revela a Walter um desejo quase insano de ser possuída, dominada, escravizada, um desejo que ela tem de rastejar aos seus pés, de ser agredida enquanto fode, uma perversão que não se revelaria em hipótese alguma, já que, à luz de Foucault, a sexualidade do indivíduo se tornou propriedade da sociedade e sua tradição patriarcal. Invertem-se tragicamente os papéis. 

Num átimo a que somos puxados para baixo, colocamos a mão no queixo, boquiabertos, mas não há tempo para surpresa. Saindo do cinema, o espectador caminha pelo Recife desalinhado, como um carro que foi desviado por uma colisão para fora da pista. A vida segue, mas mentalmente, no mundo das ideias, o espectador sente o golpe. O médico lhe revelou a condição terminal. O que fazer? Talvez, a única alternativa é tocar um tango argentino e esperar, com uma taça de vinho, o milagre que se avizinha. “Deixemos de coisas, cuidemos da vida. Senão chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta moço sem ter visto a vida”.


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