O cinema vai te contar algo que você não sabe


Como aprender com o cinema sem se tornar o chato dos filmes? É uma pergunta que me faço frequentemente, pois a minha maior tentação, ao chegar nos créditos, é correr para contar como foi bom ter assistido tudo aquilo, falar da fotografia maravilhosa, daqueles planos-sequência realistas, dos efeitos especiais fantásticos, de como as atuações me convencem e de como o roteiro é fascinante. É difícil resistir àquela vontade de rasgar elogios ao diretor e quase impossível conter o nosso ego brilhando ao ter assistido e gostado de um longo e difícil Munique (2005), de Steven Spielberg. Mas, num primeiro momento, é fundamental resistir a esse desejo incessante de tagarelar sobre cinema, pois quando falamos sobre cinema, não passamos a nossa experiência para os outros da mesma forma como apreendemos ela vendo o filme propriamente. Esse é o ponto.

O cinema é a arte de nos transportar para “sonhos reais”. O cinema é o instrumento capaz de dar forma àquelas ideias que temos dormindo ou mesmo imaginando, quando acordados. O cinema torna visual e palpável as nossas visões interiores sobre momentos que não existiram de verdade. São definições que esbarram no conceito de ficção, que nada mais é do que uma mentira roteirizada, pra usar uma linguagem próxima do cinema. Quando vemos um filme pronto, ele é mais do que a história em si. É a história que nos impressiona, mas também somos fisgados pela forma como a história nos é contada, que é, de uma só vez, o estilo de cada profissional envolvido. Um diretor como Tarantino gosta mais de sangue. Lubezki – o único diretor de fotografia que eu lembro o nome de cabeça – filma em luz natural em O Regresso (2016). E de roteiro, temos histórias marcantes pensadas por gente como Eric Roth, Diablo Cody, Stephen King, Hilton Lacerda, Jonathan Nolan, Charlie Kaufman, e por aí vai.

Quando percebi que gostava de cinema de verdade, a ponto de investir tempo nisso, eu não conhecia o nome de ninguém e, hoje em dia, ainda tenho dificuldade pra gravar. Não sou daquelas pessoas que ficam vendo os créditos quando o filme acaba. Mas, com o tempo, você vai gostando de uns filmes específicos e vê alguns nomes se repetirem. Você se interessa pelo trabalho dessas pessoas, pelas mesmas histórias que elas gostam de contar. Vai lembrar que Damien Chazelle, por exemplo, dirigiu dois filmes sobre música (Whiplash e La La Land), vai lembrar que todo filme que Juliette Binoche faça é bom (mesmo os mais fracos), vai perceber que os filmes de Wes Anderson chamam atenção pelas cores, pela excentricidade das ideias. E, aos poucos, não vai querer mais sair desse universo cheio de histórias. São as histórias dos filmes e as histórias por detrás deles.




Sem querer, querendo, já falei um bocado sobre a parte técnica do cinema e esqueci de mencionar as histórias em si, mas é aí que está. Cinema é bom porque alimenta a alma. É isso que me faz passar tanto tempo, às vezes, vendo filmes seguidos. Antes de escrever esse texto, eu vi dois filmes, O Experimento (2010), de Paul T. Scheuring, e Munique. O primeiro fala sobre comportamento, um flagrante sobre a tendência animalesca que se esconde na nossa sombra, quase uma menção à teoria de Thomas Hobbes, de que o homem é o lobo do homem. O segundo fala sobre a luta entre judeus e palestinos, a partir de um atentado contra atletas israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique, em setembro de 1972. São dramas que envolvem violência, que evidenciam a fragilidade da vida humana, a ingenuidade das pessoas, mesmo diante de tamanha ciência. Tudo porque, no fim das contas, a nossa inteligência é toda desviada para um uso banal: o poder sobre os outros.

Vendo filmes, você se dá conta dessas coisas sem precisar de muito esforço. Há um lugar-comum, quando se colocam lado a lado filmes e livros. Pra que ler o livro, se você pode saber toda a história em duas horas de filme? Faz sentido, por um lado. Você economiza tempo e, a depender da qualidade da produção, você consegue, sim, compreender a obra. Mas ignora a capacidade de aprofundamento do livro, a presença do narrador que delineia o objeto da narrativa com muito mais precisão e nos permite reflexões que, para o cinema materializar em imagens, talvez passe batido, mesmo porque você não tem tempo para refletir. Cinema também é tempo, não pode parar. Com o livro, não. Você fecha, toma uma água, pensa mil vezes como o autor imaginou uma coisa daquelas, encaixa aquilo na sua vida, etc. Mas, guardadas as devidas proporções, o cinema entrega a história de uma forma rápida e simples.

Desse jeito, como quem coleciona livros numa instante ou quadros na parede, um cinéfilo pode colecionar filmes assistidos. Essa biblioteca interna que são todos os filmes que nós vemos pode nos tornar, sim, pessoas melhores. Eu sempre fico pensativo quando converso com alguém que já viu mais de mil filmes, porque penso que essa pessoa deve ser muito iluminada. Também não faz milagre, o cinema não vai colocar ninguém no altar. O cinéfilo pode ser uma pessoa péssima, porque a cultura não tem exatamente a ver com aquela gente afetada que a venera. Mas a gente fica maior, vai aumentando com a quantidade de histórias que conhece, muita coisa fica no nosso inconsciente, muita coisa se perde. Mas essa visitação a histórias diferentes decerto nos permite crescimento, amadurecimento.

Com o tempo, você ignora o estilo em si e apreende o conhecimento. É isso que deve ficar de cada filme. As falas dos personagens, uma troca de olhares numa cena final, um gesto ou um momento marcante, como um lenço que voa, uma luta de espadas, os cabelos ao vento. Tudo isso pode trazer significados à nossa vida. É dessa maneira que o cinema dá luz a quem o assiste, porque cada história tem uma representação na vida real. Por isso, quando ouvir alguém falando muito sobre cinema e achar que a pessoa está falando grego, peça que ela fale sobre um filme que gosta. Peça para a pessoa se deter na história. Que não fique tecendo teoremas apenas, que deixe o cinema falar por si só. É essencial destacar que cinema nos ajuda a estar onde não podemos estar. É um meio de transporte, um meio de comunicação para passar mensagens, para reportar histórias. O cinema certamente vai te contar algo que você não sabe. É só prestar atenção.

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