"Encontros e Desencontros" e o resgate do encantamento


Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, é um filme que deve ser assistido nesses tempos de amor líquido. Mais do que isso: é um filme para ser sentido. Apesar de delicado, é uma estória de muitas pretensões, falando de amor e humanidade. Gosto dele porque, entre outras intenções, oferece o propósito de rejeitar o superlativo. Encontros e Desencontros nos permite redimensionar os afetos numa era em que o sentimento é tratado com a mesma métrica consumista de big sanduíches, iPhones multitarefas, glamour de redes sociais com milhões de seguidores. Imagens superlativas para agradar os olhos. Consumir muito e reter pouco.

Sinopse: Um ator solitário e de meia idade chamado Bob Harris (Bill Murray) e uma recém-casada, Charlotte (Scarlett Johansson), se encontram em Tóquio enquanto Bob filma um comercial e Charlotte acompanha seu esposo, um fotógrafo de celebridades. Estranhos em uma terra estrangeira, os dois encontram distração, fuga e compreensão entre as luzes de Tóquio após um encontro casual no bar do hotel.

A proposta, em si, já é um chamariz de superlativos. Um ator americano contratado para gravar comercial de um “super uísque” japonês. A esposa de um fotógrafo americano de celebridades internacionais, levada a tiracolo. Pode-se dizer que ambos estão em Tóquio de corpo presente, a reboque do interesse de terceiros. E que a grandiosidade de Tóquio não lhes arrebata de maneira alguma. Porque é como se a maior cidade do planeta não fosse diferente em nada do que já estamos acostumados a ver. Tóquio, por mais brilhante que seja, não é o desejo deles naquele momento.

A sensação de jet lag, um distúrbio do sono que causa insônia após longas horas de voo, exprime o sentimento dos personagens que sofrem no corpo a indiferença pelo lugar que visitam.

Indiferença é um sentimento próprio da contemporaneidade. Porque o superlativo nos afasta da verdadeira essência das coisas. A repetição, o excesso, o exagero não nos permitem acessar o cerne da coisa. Respondemos a essa superfluidade com indiferença. O que nos é abundante não agrada. Não avulta aos nossos olhos, porque desejamos algo especial, algo que nos seja específico, particular. Nós somos apaixonados pela singularidade, pelo que nos define enquanto indivíduos.




Encontros e Desencontros, o título brasileiro, captura uma ideia interessante do filme: enquanto os protagonistas se encontram no bar, por acaso, eles se desencontram do motivo que os levou a Tóquio. A vida passa a ser definida pela fuga, por aquele momento despretensioso em que conhecemos algo inesperado. É quando a mídia e o mercado capitalista param de nos seduzir, quando estamos por conta própria, na madrugada. É o olhar furtivo que nos permite quebrar a sequência na qual estamos imersos. E os protagonistas se deixam vagar pela cidade grande, conduzidos pelo prazer e pela companhia.

Sofia nos brinda com uma cena específica: após uma noitada e ainda em estado de embriaguez, Bob e Charlotte se deitam por algum tempo na mesma cama. Bob já um homem vivido e Charlotte aparentando ter, talvez, metade da sua idade. O desfecho comum seria um beijo. Nós esperamos por um beijo ou uma transa que não vem. Há um afeto indefinido, mas muito claro sobre sua existência pura e recíproca. Sofia delimita, naquele momento, o sentido de companhia, da partilha da euforia, da cumplicidade clandestina. E defende a existência de uma inocência no íntimo do ser humano. É um momento de esperança.

Só experimentei sensação parecida em Perfume de Mulher (1992). Não se nega aqui o valor da paixão. Também não se nega a fugacidade da vida. Mas Sofia cultua um apreço pela profundidade impressa nos instantes marcantes de nossas vidas; que a vertigem pós-modernista insiste em ameaçar. Encontros e Desencontros é a resistência de um tempo em que valia a pena dar o sangue por quem amamos. Um tempo em que os prazeres passageiros eram realmente passageiros e não profanavam nossa noção de relacionamento, de afeto, de alteridade. Um tempo em que era possível dar espaço ao companheiro para vê-lo florir, em que era possível persistir até o último momento na tentativa de preservar o amor, porque havia uma consideração mútua. No fim das contas, é um filme sobre uma lealdade perdida. Mas que o cinema ajuda a resgatar.

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